Se a santidade é mesmo uma vocação de todos

COMPARTILHE

Quando novos, nossos corações sonham com realizações que costumamos chamar de sonhos. É saudável e a ausência destas aspirações um tanto bonitas quanto simplórias costuma sinalizar a falta de um vigor de viver, de uma paixão pela vida.

A perda das reservas interiores daquela pureza típica da infância, que inicialmente sempre traz em anexo uma boa dose de ingenuidade e despreparo, costuma ser o marco da perda deste amor pela vida e desta disposição contemplativa. Qualquer um está meio morto quando perde este quê de candura, estes talentos (Lc 19, 13).

Perdemos assim a recordação de como é esta adrenalina que não tem tanto a ver com esportes outdoor ou com medos quanto tem a ver com a disposição profunda de ser.

Toda verdadeira e sincera disposição a amar e servir está associada a esta pureza. Será possível recuperá-la sem com isto pagar o preço de regredir à trouxice? E mais, teria sido possível amadurecer e maturar a astúcia sem ter com isso perdido a inocência?

Sem dúvidas que sim para ambas as possibilidades, mas não trata-se de operação meramente humana, ou melhor dizendo, tão somente humana.

O Sermão do Monte traz em seu cerne o âmago e a raiz da autoestima, um apelo ao nosso senso dignidade: “Vós sois o sal da terra; mas, se o sal for insípido, com que se há de salgar?” (Mt 5, 13a). Sal da terra e luz do mundo. Temperar o mundo, aquecê-lo e iluminá-lo com a força de nossas boas obras é a dignidade da nossa vocação, missão e encargo de ser gente.

O Sermão da Montanha é um dos ápices não somente da literatura universal como também da religiosa, entre outros méritos, por tocar e muito a fundo na condição humana. Há algo de especialmente marcante nele cravado no último versículo do capítulo 5 do livro de Mateus: “Sede santos como vosso Pai do céu é santo”.

Convém o contexto. Nosso Senhor cercado por multidão de milhares sobe um monte para poder falar e ser melhor ouvido, onde sem pestanejar emplaca de modo afiado e imperativo o verbo ser. Ordena a milhares. Brancos, negros, pardos, azuis e roxos. Homens e mulheres, adultos, idosos e guris. Coxos, sãos, leprosos e cegos. Sábios e incultos. Pessoas de cultura hebraica, persa, egípcia ou romanos. Uma verdadeira salada de gente!

Não poderia ter sido mais evidente. A vocação à santidade é universal e não somente não é uma possibilidade de apenas um punhadinho de grandes almas privilegiadas, como é também um mandamento.

E os santos não são tanto operadores de milagres quanto são eles mesmos um milagre. Madre Tereza de Calcutá, Tomás de Aquino, São Bernardo de Claraval e Pedro Claver. Que irmã Dulce, São Francisco e o padre Pio sejam santos isso é muito bacana. Sem dúvida gostaríamos de ser um pouco mais como estas pessoas que fizeram tanto bem ao mundo, mas daí que sejamos tão incumbidos quanto estes a ser santos pode soar nestes tempos no mínimo “desumilde” ou biruta, delirantemente distante da realidade.

Poucos pensamentos maquinam mais distantes da verdade. Se quando olhamos para os heróis, para os sábios e os santos não nos inquietamos com certa uma coceirinha muda é porque perdemos talvez aquela pureza fundamental que ousa e que alimenta a magnanimidade, e que em nada contradiz a humildade mas antes a realiza: a humildade é a verdade, e a verdade é que também nascemos para as alturas.

Como poderia eu ser tão vocacionado a santo, a ser este presente para o mundo quanto um São Felipe Neri ou um Frei Damião?

Com as chaves certas, não é nada difícil de entender, se bem que vai-se tempo para assimilar e acreditar nisso com a mesma força que um mártir crê no céu: a santidade é um tipo de maturidade que, inclusive, pressupõe outro tipo maturidade.

Sou um homem adulto. Certamente que não nasci barbado, de voz grave ou mesmo forte. Nasci um bebê lisinho e frágil, mas não há dúvidas de que não obstante minha momentânea imaturidade biológica eu nasci para me desenvolver e me tornar adulto. Eis a maturidade do corpo. Há fatores que podem comprometer a minha maturidade biológica, como uma severa desnutrição desde a infância, uma condição de saúde rara ou coisa semelhante, mas não se pode dizer que como ser humano e mesmo como simples organismo eu não nasci vocacionado a ser um homem em vez de ser toda vida um bebê ou criancinha. Também não se pode negar que a realização do nosso potencial biológico natural não se dá da noite pro dia: ela é lenta e gradual, consistente.

Ninguém pode negar também que por mais que estejamos vivendo hoje num mundo encarniçadamente puerilizante, que induz à afetação e onde se cultua a adolescência tardia, todos nós nascemos para ser psicologicamente maduros. Se estamos boiando numa sociedade notadamente marcada pelo egoísmo e por relações disfuncionais, não é menos verdade que todos nascemos para a maturidade afetiva. O império social da ignorância e da mentira também não altera em nada a vocação que todos temos à maturidade intelectual que uma educação adequada pode nos conferir. Eis a maturidade da alma. Machado de Assis certa vez disse que há muitos que chegam aos 50 anos sem ter saído dos 15. Esta maturidade exige bem mais de esforço, sem o qual posso morrer imaturo mesmo que num corpo adulto ou de ancião.

O apóstolo nos tripartiu em corpo, alma e espírito (1 Ts 5, 23). A santidade não é outra coisa senão a maturidade espiritual, uma terceira e mais rara forma de maturidade, que pressupõe aquela segunda.

A Graça pressupõe a natureza. Se bem que houveram muitas crianças santas, não é possível imaginar uma pessoa santa fazendo birra. Contradição lógica, e se os santos em algum momento fizeram foi antes de sê-lo. Se todos nascemos para ser santos é porque todos nós nascemos para ser maduros, e ninguém tem direito de ser gente imatura. Nenhum homem nasceu para ser um moleque ou mulher para ser uma pirralha, o que além do mais é coisa muito cafona.

Frequentemente boa parte (ou a maior parte) dos problemas espirituais que nos impedem de progredir na vida interior são antes problemas de maturidade humana, falta de virtude e de caráter. Virtudes sobrenaturais e espirituais pressupõem virtudes humanas.

Essa tal santidade, então, não é outra coisa: é a reconquista daquela pureza toda especial. E bem mais que isso, ela é aquela mesma pureza e bondade em botão reconquistada e amadurecida em flor e fruto. Do mesmo modo que não nascemos para ser bebês por toda a vida ou para ter o discernimento duma criancinha, também não nascemos para ser bebês espirituais e é precisamente isso que somos em relação a um São João da Cruz ou uma Santa Terezinha, por exemplo. Podemos morrer sem esta realização, o que é miseravelmente comum e prosaico. Uma tragédia!

Mais do que um diferente tipo de realização, ela é A realização por excelência, que buscamos em tantos lugares e coisas que não nos podem dá-la. Também não podemos dar cabo dela sozinhos e somente por nós mesmos. Ela não tem a ver com autorrealização, isso porque ela não é uma realização minha. É uma realização de Deus em mim com a qual eu colaboro, e Deus me realiza quando realizo sua Obra: não é só Deus, tampouco somente eu, mas sou eu colaborando com Ele. Podemos descrevê-la como uma estabilidade, uma conformidade com a vontade de Deus, um alinhamento com a ordem cósmica que procede deste mesmo Deus e é revelada naturalmente e de modo insuficiente pela Criação e sobrenaturalmente e de modo suficiente pela Religião.

Santidade é relação. Nossa realização é o aperfeiçoamento do amor, e portanto, está nas nossas relações. A santidade é uma comunhão mística e profunda – se bem que silenciosa – com este mesmo Deus, que pressupõe vida sacramental e muita ascese. É saber ser amado por Deus e saber amar com um amor que não se tem, um amor sobrenatural que vem do mesmo Deus: é um transbordamento. É precisamente por isso que irmã Dulce era santa e eu não sou, porque desenvolveu gradualmente com este mesmo Deus uma relação – sustentada pelos sacramentos – tão profunda que ainda não chego nem perto de ter hoje. E é desta mesma relação que vinha a capacidade fora do comum e sobrenatural dela de amar.

Irmã Dulce só contava com 30% dos pulmões e sofria várias limitações de saúde e idade, não muito diferente de madre Tereza de Calcutá. Certamente, caríssimo leitor, você e eu temos mais capacidade física de fazer o que elas faziam do que as próprias, mas ainda não chegamos nem perto de ter a capacidade espiritual que elas tinham para fazer tudo quanto fizeram. Ainda não transbordamos Deus. Ainda não amamos tanto. Ainda.

E é disso que se trata. Ainda. Que não morramos num eterno “ainda”.

Não há outro caminho para as alegrias perenes e para a Plenitude maior senão o da ascese que nos conduz ao alto, caminho este mesmo que foi trilhado por tantos que nos legaram a trilha do seguimento ao Mestre. A vida de um santo não é outra coisa senão o evangelho revivido e traduzido noutra personalidade.

Há santos casados, monges santos e freiras também. Leigos que nunca se casaram foram santos. Médicos e engenheiros foram santos. Empregadas e lavradores camponeses foram santos. Reis e rainhas foram santos. Mendigos e peregrinos foram santos. Foram santos pessoas francesas, austríacas e italianas. Brasileiros foram santos. Pais de família, donas de casa, órfãos e viúvos. Índios, escravos e (pasmem) samurais. Dos intelectualmente limitados aos gênios da filosofia, da teologia e das ciências. De ex-prostitutas a virgens, de sacerdotes a relojoeiros, comerciantes a eremitas e de cavaleiros a políticos: não faltam os variados exemplos daqueles que como mateiros com seus facões nos abriram caminho com sua vida e obra. Precedentes. Não faltam precedentes!

Se sou casado, nasci para ser um santo esposo para minha mulher e um santo pai para os meus meninos. Se sou gari, nasci para ser um santo gari. O mundo precisa de santos garis e não é diferente com os empresários ou com qualquer profissional que seja. Os santos são a resposta para os tempos e o que falta ao mundo (Caminho, 301). Os santos são um tempero, são um farol.

Se bem que nem todo mundo nasceu para fazer voto de pobreza, e de fato a maioria deles não o fez, todos nasceram para ser pobres em espírito (Mt 5, 3). Desapego das criaturas para apegar-se ao criador e nEle deleitar-se como uma criancinha se delicia em brincar com seu pai amado. De igual modo nem todo mundo nasceu para o celibato, mas é empírico que não apenas a luxúria não realiza o homem como o degrada e o esvazia como o sal que perde o sabor (Mt 5, 13).

Há uma alegria imensa e comum em personalidades tão diferentes que viveram contextos tão díspares esperando para ser garimpada e redescoberta pela nossa personalidade e no nosso contexto. Há horizontes. E pureza, tudo passa pela reconquista desta pureza interior que enraizada e maturada não pode senão traduzir-se em vida de plenitude e contentamento com o Bem, em caridade profunda e em obras fecundas. Em satisfação. Em legado!

Ah, queridos leitores. Não desejo pouco para vocês: desejo o céu e desde já, aqui na terra. É o que se tem quando se cultiva aquela Paz que ignora circunstâncias (Fp 4, 7); quando se vive aqui mas com o coração já lá, mesmo que nas provações, perseguições e infortúnios deste vale de lágrimas!

COMPARTILHE

5 1 vote
Article Rating
Se inscrever
Notificar de
guest

0 Comentários
mais antigo
O mais novo mais votado
Feedbacks
Ver todos os comentários

Não pare por aqui

Veja mais textos

Homem e mulher os criou

Chega a ser irônico que, no século em que os cientistas e professores reconhecem a importância da multidisciplinaridade, os defensores da ideologia de gênero ignorem,

what you need to know

in your inbox every morning
0
Adoraria seus pensamentos, por favor, comente.x