
Não sou um aficionado por animes como alguns colegas meus. Já assisti alguns — uns tantos muito bons. Dentre esses, para mim, Death Note é, de longe, não só um dos melhores, mas uma das melhores produções da cultura pop em geral. No entanto, contrastando com o enorme sucesso do anime, ainda paira sobre o mesmo certa pobreza crítica que, rasa por talvez viver somente de cultura pop, salvo raras exceções, não aprofunda o pequeno tesouro simbólico que estrutura a narrativa.
Eu era moleque quando assisti pela primeira vez o anime. Só há pouco tempo, já adulto, quando fui rever o anime com meu filho, é que me dei conta de algumas coisas: Death Note está amplamente recheado de simbolismos cristãos. Na verdade, isso não é nenhuma novidade para os fãs ou para a crítica. Tsugumi Ohba (pseudônimo do autor) afirma que alguns desses símbolos foram inseridos propositadamente, outros, porém, estão ali acidentalmente. Até onde sei, a identidade do autor, até hoje, é ainda um mistério, malgré lui eu ser capaz de apostar que o mesmo é cristão (católico, mais especificamente) dado a sua forma mentis transparecer em toda a obra — ou, senão fundamentalmente, pelo menos muito da sua cosmovisão é recheada de catolicismo.
Dentre todos os simbolismos presentes, há um que quero mais comentar, que para mim é central no anime e o mais belo de todos. Me refiro ao que acontece no episódio 25, quando L Lawliet dá o golpe final em Ligth Yagami. Para entendermos melhor essa cena, vamos retroceder um pouco e introduzir essas duas personagens.

A construção simbólica da personagem de Light, já desde o início, é clara em o remeter a Lúcifer/Anticristo. O pai de Light é Soichiro Yagami, detetive de polícia reconhecido por seus pares como homem honesto e justo. O aguçado senso de dever, moral e justiça de Soichiro é diversas vezes demonstrado durante o anime. O senso de justiça do filho, no entanto, é diametralmente oposto ao do pai. Light é possuidor da típica mentalidade revolucionária dostoievskiana que se pode encontrar nas personagens de Raskolnikof, em “Crime e Castigo”, e no terrorista, em “Os Demônios”, que ateia fogo a uma favela para matar uns tantos pobres coitados para usar a tragédia como estopim de uma revolução que o mesmo intenta mover contra o governo. Essa é fórmula da moral de Light: o fim, que é a revolução, a aurora do novo mundo, cujo deus é ele mesmo, justifica todos os meios.
Ligth é extremamente orgulhoso. Seu destacado gênio é um dos motivos desse orgulho e por isso ele se enxerga superior às pessoas. Esse orgulho é coroado e exaltado quando o mesmo encontra o death note. Isso o faz acreditar ter sido escolhido por “sabe-se lá quem” a ser o reformador da humanidade, isto é, a ser o “deus do novo mundo”, como ele mesmo se autointula. Assim, Light se torna a figura de Lúcifer/Anticristo: incapaz de transcender a aparente desordem e caos social causada pelo crime, enquanto estreita a sua visão, focando somente no que há de ruim na sociedade e ignorando a enormidade do que há de bom, ele repudia o mundo inteiro e assim rejeita a Criação; ele acredita poder se colocar no lugar de Deus, ou melhor, ser como Deus, e fazer uma obra melhor do que a Dele; ele assume para si a tentação da serpente, que acreditou poder ser maior do que Deus e, após sua queda, oferece o mesmo engodo ao infeliz casal no Éden.[1]

Outras imagens no anime vêm em auxílio à construção simbólica de Ligth. Um deles é a maçã, que apesar de não ser especificamente citada na Bíblia, é conforme uma tradição antiga, o dito fruto proibido da Árvore da Vida. A maçã simboliza a totalidade, dada a sua forma esférica (perfeição). Mas também pode simbolizar o pecado. Vejamos, simbolizando em si mesma a totalidade (da Criação ou do cosmos), uma vez que se estabeleça uma relação dessa com o ser humano, a maçã passa a simbolizar o abuso da inteligência, a aspiração à onisciência (ou imortalidade) e, portanto, o desejo de se colocar (mais um vez) no lugar de Deus, que paira acima de toda a Criação e a contempla em sua totalidade desde o alto — comer a maçã é o ato simbólico dessa tentação. De fato, o pecado original é este, o conhecimento do bem e do mal, é essa a promessa da serpente: “Sereis como deuses”. Mas o conhecer de Deus é diferente da apreensão intelectual humana, o conhecer de Deus é ser.[2]

Ligth não gosta de maçãs, o que pode ser entendido nesse contexto como símbolo da natureza original humana, que não busca afronta contra Deus. Mas seu shinigami as adora. Aliás, a relação de Ryuk com Light é símbolo da possessão demoníaca. É através de um poder (o caderno) inadvertido que é dado de presente ao Light que Ryuk reforça diabolicamente o seu orgulho. Sugestivamente, é com maçãs que Light alimenta e vicia o seu shinigami (demônio): alimentando-o, ele retroalimenta a influência da possessão sobre si, isso vai se evidenciando na medida em que Light progride em seu plano e torna-se cada vez mais impiedoso e sem compaixão pelas pessoas. Também seu nome, Light, que significa luz, é claramente sugestivo. Tal como Lúcifer, portador da luz, ambos são tentados a tornar-se aquilo não são. É arrogantemente que sua personagem se nomina Luz, um vez que é justamente imerecido. Isso é reafirmado no seu sobrenome “Yagami”, que composto pelos kanjis 夜 (Yoru , yo/ya) e 神 (Kami), que significam respectivamente “noite ou lua” e “deus”. Há ainda outros símbolos auxiliares, mas ficarão para posterior exegese.

Ao contrário de Light, a construção simbólica de L é mais lenta. Apresentado como melhor detetive do mundo, L Lawliet é um jovem órfão que cresceu em um orfanato e cuja figura mais próxima de pai que possui é a do seu tutor, Watari, que é também seu braço direito na profissão/hobby de detetive. L é construído para ser a antítese Light — isso é dito inclusive pelo desenhista da série, que o concebeu esteticamente inverso a Light. Segundo um spin off da série, L significa duas coisas: last one, o último, o insuperável, e lost one, o perdido, aquele que está em exílio do Céu. Já o sobrenome Lawliet, é composto de law, que significa lei, e liet, uma derivação de lie, que significa mentira. É, portanto, aquele que pratica a lei ou a justiça pelo artifício do mistério, da ocultação, que no caso é o seu anonimato.
L parece estar, em relação a suas motivações pessoais na luta contra o crime, entre a seriedade de um certo senso de dever e a lúdica forma de resolução de enigmas e quebra-cabeças. É só na medida em que ele é contraposto à figura de Light, que sua personagem vai se desenhando dentro de aspectos simbólicos mais definidos. Só o que fica claro desde o início é que L é igualmente genial a Light. Mais tarde, a extraordinária genialidade de ambos, que os destaca das demais pessoas, vai encontrar uma breve “amizade” onde antes só havia solitute.

O ápice da estruturação simbólica da figura de L só acontece no final, quando o embate que se desenrola entre os dois ao longo da série chega ao inevitável fim. Prestes a iniciar o último ato do seu plano, já certo da própria morte, L se encontra pensativo na cobertura do prédio onde funcionava o QG de investigações para a captura de Kira. Light o encontra lá, introspecto no meio da forte chuva. A água que cai na terra vinda do céu, é símbolo de limpeza espiritual, de influências celestes, de perdão também. Os dois conversam em meio ao temporal. L confronta Light, o chamando abertamente de mentiroso, esperando dele uma confissão. Mas Light, com um discurso pronto e demagógico, se defende da acusação. No rito sacramental da confissão, a acusação é o primeiro passo em direção ao perdão. É a partir da acusação, que se segue o arrependimento, o propósito, a confissão e, então, o recebimento da graça do perdão que vem do alto.[3] Se negando a admitir seus crimes, Light se fecha para a possibilidade do perdão — todo esse diálogo é alusivo à justiça divina, não à justiça dos homens; quando Light se defende da acusação, a intenção subjacente é a de justificar o erro e, portanto, obstinar-se a ele.

Em seguida, saindo da chuva e indo se abrigar, ambos procuram se secar. Enquanto Light se seca, eles têm o seguinte diálogo:
L: Bem, certamente foi uma saída desagradável.
Light: É culpa sua. O que esperava?: Tem razão, desculpa.
Vindos da chuva, o secar-se ou, mais propriamente, limpar-se, significa a busca por purificação. O diálogo que se segue entre eles é um tanto ambíguo. A imagem da atitude corporal em que se encontram e do que aconteceu simbolicamente há pouco na cobertura vêm em auxílio à interpretação psicológica dessa conversa. L se desculpa por ter afrontado Light, que desagradavelmente se viu na necessidade de defender-se. Nesse momento, L toma o pés de Light na intenção de limpá-los.
Light: O que está fazendo?
L: Achei que podia ajudar. Você estava se enxugando.
Light: Tudo bem. Não precisa fazer isso.
L: É o mínimo que posso fazer para purgar os meus pecados. Eu sou muito bom nisso.
Light: Faça o que quiser.
L: Tá bom.

A referência simbólica está claramente na passagem da Santa Ceia, onde Jesus lava os pés dos seus apóstolos, inclusive o do traidor, os trazendo para Sua intimidade e manifestando sua inclinação ao perdão de tudo o que viria a acontecer em seguida.[4][5] No contexto do anime, L oferece novamente uma graça a Light, que pela segunda reluta aceitar. Nesse ato de L está contido a maioria das bem-aventuranças que ensina Jesus no Sermão da Montanha[6], bem como o desejo do perdão que só é merecido ao perdoar, ensinado na oração que o Cristo nos deu nessa mesma ocasião.[7] Em seguida, num gemido de dor, Light expressa descontentamento com a limpeza, ao que L reponde que com isso ele iria se acostumar — L se refere a expiação que aguarda Light. L demonstra saber que a dor é uma fatalidade do futuro de Light, seja com a esperança que ele tem de que Light se arrependa, seja com a amarga derrota e queda que afinal o aguarda. Nesses dois momentos, o da chuva e o da limpeza dos pés, a construção simbólica revela a intenção subjacente das personagens, algo que no diálogo fica só remotamente sugerido.

Vendo que L também se encontrava molhado, Light enxuga o rosto de L. Aqui a referência é a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a sexta estação da Via Crucis, onde uma das mulheres que seguiam Jesus, vendo-O sofrer, ensanguentado, cuspido e empoeirado, enxuga o seu rosto na intenção de aliviar o seu sofrimento. Esse ato de Light com o amigo/rival, é o seu último impulso de misericórdia, que para sua infelicidade, não se segue e tem fim ali mesmo. No fim dessa cena, L profetiza:
L: Daqui pra frente vai ser uma solidão.
Light: O quê?
L: Eu e você vamos nos separar em breve.

Mesmo rivais, um era companhia para o outro, tanto pela genialidade, quanto pela rivalidade. Essa proximidade guarda analogia com as figuras simbólicas a que suas personagens se remetem: nenhum outro ente, além de Jesus Cristo e Lúcifer, esteve tão perto de Deus, da Luz, quanto está Jesus e quanto esteve o anjo caído.
L entendia que não havia saída para ele. L tinha certeza que Light era o assassino em massa autodenominado Kira. L só não tinha como provar sua tese no momento. L sabia que sua morte era inevitável e que estava próxima. Isso é simbolizado no episódio ao L confessar que durante o dia, por diversas vezes, ouvia sinos tocarem. O sino simboliza a comunicação que se aproxima entre o Céu e a Terra, a estreia daquilo que é transcendente. No contexto do episódio, o sino representa a morte vitoriosa e redentora de L. Num salto de fé, L elabora o mais complexo de seus planos: uma vitória post-mortem. L usa oportunamente a sua morte para provocar ainda mais a arrogância de Light, que ele sabia que o cegaria e o precipitaria à derrota. O paradoxo (aparente) da vitória na morte é símbolo da Cruz de Cristo. É na morte de cruz que Cristo conquista a redenção da humanidade. Cruz significa vocação. A vocação de L é a de ser o salvador das vítimas de Kira (que não se resume aos criminosos), mas sua vitória só virá através da sua morte. Uma vez que L entende isso, ele aceita a sua missão e se entrega a ela tal como o cordeiro pascal. L ao morrer, se ausenta fisicamente, mas seu espírito se torna muito mais presente do que antes, na forma do plano que ele elaborou e colocou em curso. Esse é o ato simbólico central do anime. Tudo o que se desenrola daí para frente é consequência desse breve momento.

Não deixe de comentar também o uso importantíssimo do Kyrie Eleison em várias cenas do anime