O que a tradição republicana tem a nos ensinar?

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Dados o evento golpista que inaugurou a república e a consagração dos comentários monarquistas sobre ele – através da primeira historiografia do século XX – como a verdade sobre os fatos de 1889 e anos anteriores e posteriores, a tradição republicana que se ia construindo e ganhando espaço desde 1870 ficou relegada ao esquecimento. O republicanismo foi pintado como impopular, desprendido das massas; moda de elite desprezada pelo povo. Uma historiografia mais recente, porém, tem redescoberto a disseminação das ideias republicanas no final do século XIX, ganhando ecos até mesmo em senzalas de fazendas de café no oeste paulista. Para citar três trabalhos de um número muito mais vasto e, infelizmente, relegado aos repositórios dos programas de pós-graduação, fiquemos com as pesquisas de Angela Alonso (Ideias em Movimento), Maria Tereza de Chaves Mello (A República Consentida) e Antonio Carlos Galdino (Campinas, uma cidade republicana).

Todas as produções são teses de doutorado. Nelas, vê-se que a ideia republicana se espalhava, com alguns de seus jornais de propaganda (A Província de São Paulo, por exemplo), tornando-se nacionais, ainda que a tiragem fosse voltada para a região provincial. Segundo Alonso, na década de 1880 os críticos do regime imperial já eram mais populares que o próprio parlamento. Mello invoca o oportunismo de muitos deles, que se aproveitavam de crises naturais para inflar o povo contra a monarquia. Durante a Revolta do Vintém (1879), o chefe de um clube republicano, José Lopes da Silva Trovão, discursou para 5 mil pessoas que protestavam contra a cobrança de um vintém sobre a bagagem nos bondes do Rio de Janeiro.

O texto de Galdino mostra como o Partido Republicano Paulista conseguiu emplacar alguns de seus membros no parlamento, usando a estratégia da troca de votos com o Partido Conservador, interessado em retirar os liberais do jogo. Funcionava da seguinte forma: o voto era distrital e nos locais em que o partido liberal era forte, os conservadores – menos expressivos – votavam nos republicanos para minar a influência do seu adversário que detinha real poder. Os republicanos, por sua vez, devolviam os votos naquelas regiões em que sua força era baixa, mas capaz de influenciar na derrota de um dos demais partidos ao se unir ao outro. Isso demonstra a organização do partido republicano de São Paulo, como também o motivo de sua baixa representatividade no parlamento. Como eleger alguém quando o voto é controlado pelas autoridades? Ainda que houvesse popularidade, fora das instituições formais, o controle sobre o voto era o que determinava quem iria vencer o pleito. Tanto que em uma eleição conservadores e liberais se uniram para vencer os republicanos.
Porém, o que mais chama atenção é como a república foi gestada. Não tendo participação na sociedade política, os republicanos construíram suas bases na sociedade civil e nos seus micropoderes. Eles falavam nos jornais, nos teatros e nos comícios que organizavam. Seus grupos de ficcionistas e poetas conquistaram corações e mentes, seus apaixonados oradores e propagandistas deslegitimaram a monarquia e boa parte de instituições que a seguiam. Quando a tábula do regime caiu, segundo Maria Tereza de Chaves Mello, suas bases já estavam carcomidas: a hegemonia era republicana.

Eles uniram a ideia de democracia à ideia de república. Bem como a imagem do progresso e da civilização ao regime que defendiam. Enquanto isso, chamavam a monarquia de decrépita, decadente, tal qual o cansado e doente imperador. A república era o avanço, a monarquia o atraso. Tais fórmulas linguísticas prepararam as imaginações para o que viria. Assim, quando se decidiu em casa de Deodoro pelo golpe, quando houve a quartelada, quando o imperador foi exilado, os baianos continuaram dançando aos seus santos, seus verdadeiros reis, como diria Gilberto Freyre (Ordem e Progresso). Aquilo representava muito pouco para eles. A república já estava feita havia tempo.
E, como a história pode servir para criar tipos e tópicos, modelos que podem ser imitados, a fórmula republicana não é uma mestra má. Não falo do golpe em si, mas do que o veio preparando. Ganhar, antes do poder do Estado, o poder de formar um vocabulário, de disseminar ideias, de conquistar corações e mentes.

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