Quando se trata de vida interior, mesmo os mais enamorados de Deus ou devotos da intelectualidade vivem hoje da herança e das migalhas da experiência espiritual alheia, que é de fato edificante mas em nada representa uma renovação. É encantadora a vida e a experiência profunda de Deus dos grandes santos, mesmo dos que viveram na simplicidade dum Lavrador ou dum Labre, mas isso é nada. É nada se isso não nos fere para que escrevamos com as nossas vísceras também nós a nossa hagiografia e a nossa epopeia.
Um São João da Cruz pode nos encantar com seus versos ou iluminar-nos com seus ensinamentos, mas será tanto inútil o brilho de sua obra quanto menos nos incitar um fervoroso e caliente Desejo de Deus. O problema certamente não está no grande mestre, está no nosso fechamento à experiência amorosa madura, a ser e fazer. Não faltam caricaturas sentimentais, dramáticas ou pomposas – portanto infantis – desta experiência espiritual, que antes contribuem para certa repulsa que para nos atiçar a ambição daquela única coisa que importa, e que jamais nos seria tirada (Lc 10, 42).
O êxtase espiritual de São Bernardo e a sabedoria de Hildegarda, a contemplação de Bruno de Colônia e a fibra de Santo Antão. A alegria do Francisco de Assis e a nobreza do de Sales. A precisão e a assertividade de um Olavo. A força e paciência de São José e o ardil de Odisseu. A coragem de Hernán Cortés!
Queimem os barcos! Como seria magnífico que já estivessem ardendo em brasa (Lc 12, 49).
É uma tal densidade existencial (diria o grande Javier Garrido Goitia) que nos está fazendo falta. É a concretude da experiência dum Frankl, mas vivida por nós mesmos e vivida do nosso jeito e nas nossas circunstâncias.
Carlos Magno não pode criar uma nova civilização, Inácio de Loyola e Francisco Xavier não podem fundar uma nova cristandade. Aristóteles não educará o mundo junto a Platão, a Boécio ou mesmo a Confúcio: eles simplesmente não estão aqui para isso, mas parece-me que nós estamos e que podemos ensiná-los por aí. É sob o legado de gigantes que somos chamados a ser mais que miseráveis, e ser nestes tempos a mão na massa que nenhum destes colossos pode ser.
Não precisamos tanto de um Tomás de Aquino ou Agostinho de Hipona quanto de novos santos tomás e novos agostinhos. Estes novos luminares de que carecem os nossos tempos sem dúvida estarão inseridos numa tradição que vivamente se nutre de nossos antigos guerreiros, sábios e místicos. Entenda-se com “místicos” aqueles que vivem nesta vida em intimidade direta com os mistérios de Deus (vocação comum a todos), não aquele punhadinho de umas e outras almas que foram escolhidas a Dedo para protagonizar fenômenos sobrenaturais e que do mesmo Deus recebem favores extraordinários que os permitem pular etapas. Crescer exige método, labor e humildade!
Sem dúvida não iremos longe sem que se enraíze em nós o legado de nossos gigantes, sem assimilarmos as bases permanentes da civilização. Os clássicos de ontem e a Doutrina de sempre. Ou nos integramos deste modo à alma da Civilização, à tradição, ou estaremos integrados à sua decadência.
É verdade e nunca é o bastante relembrar, mas em última instância, não é dos grandes homens de ontem que carecemos, é de sermos grandes homens hoje. Novos santos, heróis e mestres, com novas contribuições e com suas experiências únicas, singulares e irrepetíveis. Novos sábios e místicos se nutrem dos anteriores e tem neles firme norte, mas não param aí ou se contentam a ser por isso meros papagaios de seus antecessores. Os clássicos são o meio mas não são o fim, o fim é Deus e o efeito é tornar-se também um clássico. Se minha vida e obra não tendem a tornar-se o clássico de amanhã, salvo milagre ela está já morta e estéril desde hoje. Há pouco que se fazer quando são poucas as ambições magnânimas, ou quando estas já são estranhas ao coração.
Não há aqui um convite à afetação daquelas coisinhas excitantes que nos estimulem fantasias megalomaníacas, muito menos a nos intoxicarmos com esta maconha cultural que recusa e desmerece a sustância e perenidade do alimento riquíssimo de nossos grandes. Não se trata de desejar superar os clássicos ou delirar que é possível ultrapassá-los. Não há nisso também, de modo algum, uma apologia ao extraordinarismo e à excentricidade, mas sim à irredutível necessidade de Viver profundamente as coisas mais simples e reais, sob o impulso da Graça. Viver não abstendo-se do cotidiano e seus deveres, mas elevando-os pela força de ideais – estes sim – extraordinários. Se bem que a alimentação é constante (vide a nossa respiração), nós não vivemos para nos alimentarmos: nos alimentamos para viver.
Até onde sei, Guénon foi o primeiro a insinuar que nenhuma civilização sobrevive sem identidade espiritual. É sobre a mais elevada cultura que foi definida esta civilização, mas cultura não é senão o fruto da experiência, e a mais elevada experiência é mesmo a experiência mística, e a mística do Esponsal maior. O mundo geme necessitado e sedento das nossas experiências literárias, marciais e transcendentais próprias, realistas e concretas, carente daquilo que só nós podemos viver e que pode ser vivido somente do nosso jeito para que então possa ser verdadeiro Dom de Si.
Civilizações vieram e irão, nações são erguidas e decaem. No entardecer da crise, no entanto, surgirá sempre a derrocada da decadência e a superação do que cai de podre por algo melhor ou minimamente menos pior. O que nos cabe é, cravados em nossas mãos – como nas de Cristo – os ideais mais elevados, forjarmos com estas mesmas mãos chagadas aquilo que gostaríamos de ter tido e nos foi sonegado. Sermos exatamente aquilo e aqueles que faltam ao mundo. Cabe ser a contramão que de pé constrói e semeia em meio às ruínas, para que algum dia ao sol alguém colha feliz os frutos doces de novos tempos e horizontes culturais mais largos. Se hoje nos são estreitos, é na marra e no dente que devemos alargá-los, pela força de personalidades afiadas desde dentro.
Caríssimos leitores, não há terceiro caminho. Ou aprumamos as velas do mundo para rumá-lo ao Alto, a começar por nós e pela nossa ascese pessoal, ou serão novamente os torpes quem rumarão o mundo enquanto os bons lutam sozinhos. É de ordem: que não nos reste como herança tão somente a vida que poderia ter sido e não foi, um pálido olhar para trás ou quem sabe talvez a neurose própria do fingir não ver o cinza-vazio de uma vida pouco gasta e pouco devotada ao verdadeiro Bem.
Texto belíssimo e super importante.
E o seu comentário super gentil!