Bruno Magalhães, mestre em Filosofia (PUC-SP), procurador da República e apresentador do programa cultural Contraponto (Brasil Paralelo).
1. Atualmente é muito incomum que as pessoas sintam a necessidade de estudar. Como tudo isso começou para você?
Bom, se você resgatar a concepção que o estudo teve ao longo de toda a história Ocidental, como um serviço ao indivíduo e à sociedade com o objetivo de atualizar os potenciais, sim, é incomum. O problema é que essa concepção, digamos, “tradicional”, está fora de moda. Na concepção que tem vigência hoje, quem disser que não gosta de estudar e que não quer estudar é visto com reservas. Ou não é assim? O ponto é que aquilo que as pessoas estudam, e a razão pela qual se dedicam, por assim dizer, aos estudos não corresponde ao que todas as gerações até há poucas décadas entendiam por “estudar”. Então, todo mundo, ou quase todo mundo, sente desejo de estudar, mas quase ninguém estuda de verdade, no sentido genuíno. Nesse ponto você tem razão.
Como eu comecei a estudar. Eu senti necessidade de estudar “por fora” quando entendi que minhas dúvidas, minhas inclinações, meus problemas, enfim, não encontravam ressonância nem na família, nem no colégio, nem nos meus vizinhos. Isso foi no final da adolescência. As livrarias, e mais tarde os sebos de Belo Horizonte, foram um portal para um universo em que essas questões eram discutidas, valorizadas e, à sua maneira, esclarecidas.
2. Para que serve o processo de autoeducação?
Serve para muita coisa. Eu diria que, basicamente, serve para você ajustar sua visão de mundo àquilo que o mundo é de verdade. Sem isso você não se conhece, você não conhece verdadeiramente as pessoas, ainda que possa amá-las e, por essa via, conhecê-las pelo coração. Se sua visão de mundo é equivocada, você não acerta no trabalho, não acerta nas relações, você não acerta em nada a não ser por sorte. Você é, como disse Fernando Pessoa, alguém que espera que lhe abram a porta ao pé de uma parede sem porta. A autoeducação serve para você saber onde estão as portas e em quais delas você precisa bater.
Agora, é preciso entender que, num certo sentido, assim como não existe educação sem o interesse do aluno, por outro lado também não existe propriamente autoeducação. “Autoeducação” genuína só aquela do personagem do livro “O filósofo autodidata”, quer dizer, só seria possível falar em autoeducação se alguém, sem auxílio de ninguém, nem mesmo de livros, começasse a intuir o funcionamento da natureza, da sociedade e dos indivíduos a partir de seus próprios pensamentos. Se você aprende com livros, você já não está fazendo autoeducação, porque você está aprendendo com outra pessoa.
Mas é claro que o sentido que a palavra autoeducação tem na sua pergunta é aquele que aponta para a pessoa que não está matriculada em uma instituição de ensino e, por vontade própria, decide o caminho que seguirá para avançar no processo educativo. Isso tem sido cada vez mais comum, não é? Há um enorme risco nesse caminho, que é o risco de não conseguir avançar até onde você quer. Isso pode acontecer por falta de orientação adequada, pode acontecer por decisões equivocadas, pode acontecer por amadorismo. Um bom professor é um bem muito precioso. Ele pode lhe poupar anos de estudo, ele pode realmente salvar sua vocação. Isso é sério! Todo aquele que decide começar a estudar é como alguém que acorda um dia e descobre que está cego. Para chegar aonde quer, essa pessoa precisará, durante algum tempo, ser acompanhada por quem conhece o caminho e que, de preferência, já o tenha trilhado. Se você, de repente cego, se arriscar a ir sozinho, vai tropeçar muito, vai cair muito, vai se cansar, pode ter a tentação de voltar para casa sem ter terminado o percurso, enfim, pode ser atropelado ao atravessar uma via expressa. E nem vai poder culpar o motorista que o atropelou.
3. Como uma pessoa, que está lendo isso agora e nunca se importou com estudo, pode começar a trilhar esse caminho?
Eu não acredito que uma pessoa que nunca se importou com estudo vá começar esse caminho. As pessoas que têm vocação para os estudos sempre estiveram em torno deles, de alguma forma. Eu penso que 95% das pessoas podem ser instruídas para viver em sociedade sem ser um estorvo, sem ser causa de sofrimento desproporcional aos demais. Mas tenho a forte impressão de que nem mesmo nas melhores sociedades é possível convencer alguém a estudar, no sentido em que estamos tratando aqui, se a pessoa não quiser muito, muito mesmo. E esse “querer muito” é um movimento interior.
4. Para você, existe alguma ordem de leitura ou devemos seguir com base nas nossas curiosidades?
Eu acredito no valor dos currículos escolares, quer dizer, partindo da premissa, claro, de que aqueles que os elaboram estejam sintonizados com a educação no seu sentido genuíno. Os currículos bons, a serviço de bons objetivos, são fruto de um longo processo de tentativa e erro. Então, a resposta é: sim, existe uma ordem de leitura adequada, sobretudo na fase em que o aluno está envolvido na formação de base. Depois que essa formação é concluída satisfatoriamente, naturalmente cada pessoa começa a desenvolver suas inclinações naturais. Desse ponto em diante, não é possível “aplicar” uma ordem de estudos que valha para todos, porque cada um deverá encontrar seu próprio caminho, se possível sob a orientação de um professor ou de alguém mais experiente. Mas já que você falou em curiosidade, ela, se for bem dosada, pode ser um excelente guia na descoberta de novos autores e de novas perspectivas.
5. Qual foi a maior dificuldade que encontrou em seus estudos?
Olha, foram e têm sido várias. Mas vou ficar em duas. Como a maior parte do tempo sou eu mesmo quem escolhe o que vou ler, a ordem, a profundidade, é natural que demore mais tempo para mapear determinada área de estudos e ter o domínio possível do estado da questão. Ou seja, estou falando da dificuldade de estudar sem o auxílio de um professor. A outra grande dificuldade é encontrar pessoas com interesses semelhantes, para trocar ideias e crescer junto. Por experiência própria, uma conversa rápida com um grupo de amigos, sobre o tema que você está estudando, pode ser um fermento muito poderoso. Mas por algum motivo que não sei explicar, isso só costuma funcionar se for espontâneo. Ou seja, não acho que os grupos de estudos sirvam para isso. Eles servem para outras coisas também importantes, mas para essas “intuições” que animam e que retificam caminhos, não.